Ciana
Aquilo um dia foi uma cidade. Cheia de luz, calor, gente andando, rindo, se divertindo, brigando, vivendo. Todos os dramas se desenrolando com vida própria. Agora restavam sombras, pedaços de tijolos, restos de um caos. No lugar de pessoas, silêncio. Em vez de vida, ruas vazias com escombros de um passado.
Ciana andava em meio ao deserto da cidade velha, mas não sentia medo. Desde que saiu do orfanato em que viveu quase sua vida inteira, há um ano, ela conhecia aquele caminho como a palma de sua mão. Ali se escondeu, dormiu, caçou e sobreviveu, sempre sozinha. Mas principalmente foi ali que ela fez o que mais gostava na vida e encontrou seus mais fiéis companheiros: o bravo cachorrinho que apelidou de Gibran e os livros.
Aos dezessete anos aquele se tornou seu lar. Ali sua vida praticamente começou e ela foi livre pela primeira vez. Sozinha e faminta, acostumada ao silêncio e ao trabalho, fugiu da barulhenta cidade de Pilarium e preferiu perambular por ali, sem testemunhas de sua própria solidão. Solidão essa que não durou muito ao encontrar uma alma tão faminta e carente como a dela. Um filhote de vira-latas marrom que parecia sempre feliz, que caminhou ao seu lado, que a olhou com olhos pidões e que a fez dividir a pouca carne que tinha. Agora, maior e mais forte, ele caminhava ao seu lado, seu fiel amigo Gibran.
Há um ano a sua vida mudou drasticamente, não por ter saído do orfanato ou por ter encontrado seu querido Gibran. Mas por um livro entre tantos, meio perdido no meio de uma biblioteca abandonada, sua capa de couro puída, suas páginas roídas. Gibran o encontrou quase que reluzente no meio da sala escura repleta de poeira e ela o pegou, curiosa por seu peso e aparência realmente antiga. Mal dava para ler o título: ProdigiorumLibellus, de Júlio Obesequens. Mas algo nele atraía como se fosse de ouro.
Depois que o abriu, ela correu os olhos por suas páginas ilegíveis em latim, sentindo como se uma corrente de energia percorresse seus dedos, entrasse em sua corrente sanguínea e a fizesse ficar tonta. Por um momento, pensou que fosse desmaiar com a vertigem que pareceu dominá-la, tirá-la do ar por alguns momentos. Quando voltou, tudo parecia normal.
Largou o livro lá, pois não sabia ler latim e sinceramente se assustou com as sensações que ele despertou nela. Procurou por outros e seguiu o seu caminho. Quando coisas estranhas começaram a acontecer, poderes desconhecidos surgindo subitamente em momentos mais absurdos, Ciana pensou se aquele livro não poderia ser a chave. Mas nunca teve certeza. Agora recebia aquela carta em papel caro, fino, com um holograma complicado e letras belíssimas. O conteúdo era um convite para ela, um convite sem remetente, para o final daquele dia, na parte velha da cidade.
Duas coisas deixaram-na surpreendida e muito desconfiada. Primeiro era o fato daquela carta ter aparecido na velha residência abandonada onde ela praticamente se escondia. Nunca tinha visto alma viva por perto e nem notara ser seguida. Gibran ajudava a averiguar isso. Como alguém a achara ali e mais, como deixara o convite sobre o catre em que dormia sem ela e Gibran perceberem?
A segunda coisa era o próprio conteúdo do convite:
“Ao cair da noite, esteja na velha biblioteca da rua Quinta com a Santra. Assunto de seu interesse. Outros são como você.
Estarei a sua espera.
Ass.: P.L.”
“Outros são como você”. A frase martelou na mente de Ciana o resto do dia. O que aquilo significava? Outros órfãos solitários, sem casa e nem dinheiro, se escondendo e dormindo pelos becos da parte velha de Pilarium, como ratos? Ou ainda mais provável, alguém com poderes, como ela tinha há um ano?
Apesar da desconfiança e do fato de estar acostumada a evitar pessoas, aquele bilhete perturbou-a. Ela não era covarde. Assim, caminhou em direção ao local do encontro, como sempre atenta à sua volta, preferindo as sombras e com seus passos leves que pareciam de bailarina mal fazendo barulho.
Gibran corria na frente todo alegre, sem saber que o silêncio dela estava repleto de expectativa e apreensão. A Biblioteca com parte de seu muro caído, seus livros espalhados pelo chão com poeira, muitos rasgados e queimados, era o local de encontro. O mesmo local onde encontrara aquele livro em latim que mexeu tanto com ela e que nunca conseguiu esquecer.
Ciana ajeitou sua machadinha, que usava para matar suas caças, sob a capa, presa em sua cintura, pensando se estaria caindo em alguma armadilha. Levava presa à coxa uma pequena faca.
Ao subir os degraus imundos do prédio que uma vez fora belo e imponente, ela se tornou bem alerta, cautelosa. Sobreviveu sozinha contando com seus instintos e era neles que se garantia agora. Percorreu silenciosamente os corredores na penumbra, seus olhos correndo a sua volta, seu coração mais acelerado do que gostaria. A sala onde achara o livro estava perto. Em segundos Ciana chegou sob a soleira da porta aberta e olhou para dentro. Lá havia somente uma pessoa.
Como a luz era pouca, no início ela apenas vislumbrou uma figura alta, recostada contra uma mesa, sua silhueta desenhada contra a janela imensa com várias vidraças quebradas. Ela ficou imóvel, alerta, esperando uma reação. Seus olhos se acostumaram com a pouca luminosidade de uma única lâmpada e ela percebeu novos detalhes. Era um homem bem vestido, cabelos negros banhados pelos raios do luar que vinham da janela, levemente despenteados, roçando a gola de sua camisa cara e fina. E segurava uma garrafa de bebida, em uma pose displicente. Mas o que a imobilizou foram seus olhos, fixos nela. Até Gibran pareceu se impressionar, pois ficou quieto.
Um arrepio percorreu a espinha de Ciana e ela mal percebeu que por um momento sua respiração falhou. Aqueles olhos lindos, azuis, brilhando no escuro como dois cristais reluzentes deixaram-na completamente hipnotizada. Seu coração deu um salto absurdo e então disparou loucamente, espalhando adrenalina em seu sangue, deixando-a completamente abalada.
Tudo o que via era ele, o homem mais belo e impressionante que pusera os olhos na vida. Esqueceu de todos os cuidados para não encarar as pessoas, passar despercebida, estar alerta. O único pensamento racional que teve foi que ele não era estranho, ela já o vira em algum lugar.
Sem pensar que poderia estar caindo em uma armadilha ou correndo riscos, Ciana simplesmente entrou na enorme sala e caminhou na direção dele. Parecia querer comprovar que ele era real. Ou simplesmente vê-lo mais de perto.
Aquilo um dia foi uma cidade. Cheia de luz, calor, gente andando, rindo, se divertindo, brigando, vivendo. Todos os dramas se desenrolando com vida própria. Agora restavam sombras, pedaços de tijolos, restos de um caos. No lugar de pessoas, silêncio. Em vez de vida, ruas vazias com escombros de um passado.
Ciana andava em meio ao deserto da cidade velha, mas não sentia medo. Desde que saiu do orfanato em que viveu quase sua vida inteira, há um ano, ela conhecia aquele caminho como a palma de sua mão. Ali se escondeu, dormiu, caçou e sobreviveu, sempre sozinha. Mas principalmente foi ali que ela fez o que mais gostava na vida e encontrou seus mais fiéis companheiros: o bravo cachorrinho que apelidou de Gibran e os livros.
Aos dezessete anos aquele se tornou seu lar. Ali sua vida praticamente começou e ela foi livre pela primeira vez. Sozinha e faminta, acostumada ao silêncio e ao trabalho, fugiu da barulhenta cidade de Pilarium e preferiu perambular por ali, sem testemunhas de sua própria solidão. Solidão essa que não durou muito ao encontrar uma alma tão faminta e carente como a dela. Um filhote de vira-latas marrom que parecia sempre feliz, que caminhou ao seu lado, que a olhou com olhos pidões e que a fez dividir a pouca carne que tinha. Agora, maior e mais forte, ele caminhava ao seu lado, seu fiel amigo Gibran.
Há um ano a sua vida mudou drasticamente, não por ter saído do orfanato ou por ter encontrado seu querido Gibran. Mas por um livro entre tantos, meio perdido no meio de uma biblioteca abandonada, sua capa de couro puída, suas páginas roídas. Gibran o encontrou quase que reluzente no meio da sala escura repleta de poeira e ela o pegou, curiosa por seu peso e aparência realmente antiga. Mal dava para ler o título: ProdigiorumLibellus, de Júlio Obesequens. Mas algo nele atraía como se fosse de ouro.
Depois que o abriu, ela correu os olhos por suas páginas ilegíveis em latim, sentindo como se uma corrente de energia percorresse seus dedos, entrasse em sua corrente sanguínea e a fizesse ficar tonta. Por um momento, pensou que fosse desmaiar com a vertigem que pareceu dominá-la, tirá-la do ar por alguns momentos. Quando voltou, tudo parecia normal.
Largou o livro lá, pois não sabia ler latim e sinceramente se assustou com as sensações que ele despertou nela. Procurou por outros e seguiu o seu caminho. Quando coisas estranhas começaram a acontecer, poderes desconhecidos surgindo subitamente em momentos mais absurdos, Ciana pensou se aquele livro não poderia ser a chave. Mas nunca teve certeza. Agora recebia aquela carta em papel caro, fino, com um holograma complicado e letras belíssimas. O conteúdo era um convite para ela, um convite sem remetente, para o final daquele dia, na parte velha da cidade.
Duas coisas deixaram-na surpreendida e muito desconfiada. Primeiro era o fato daquela carta ter aparecido na velha residência abandonada onde ela praticamente se escondia. Nunca tinha visto alma viva por perto e nem notara ser seguida. Gibran ajudava a averiguar isso. Como alguém a achara ali e mais, como deixara o convite sobre o catre em que dormia sem ela e Gibran perceberem?
A segunda coisa era o próprio conteúdo do convite:
“Ao cair da noite, esteja na velha biblioteca da rua Quinta com a Santra. Assunto de seu interesse. Outros são como você.
Estarei a sua espera.
Ass.: P.L.”
“Outros são como você”. A frase martelou na mente de Ciana o resto do dia. O que aquilo significava? Outros órfãos solitários, sem casa e nem dinheiro, se escondendo e dormindo pelos becos da parte velha de Pilarium, como ratos? Ou ainda mais provável, alguém com poderes, como ela tinha há um ano?
Apesar da desconfiança e do fato de estar acostumada a evitar pessoas, aquele bilhete perturbou-a. Ela não era covarde. Assim, caminhou em direção ao local do encontro, como sempre atenta à sua volta, preferindo as sombras e com seus passos leves que pareciam de bailarina mal fazendo barulho.
Gibran corria na frente todo alegre, sem saber que o silêncio dela estava repleto de expectativa e apreensão. A Biblioteca com parte de seu muro caído, seus livros espalhados pelo chão com poeira, muitos rasgados e queimados, era o local de encontro. O mesmo local onde encontrara aquele livro em latim que mexeu tanto com ela e que nunca conseguiu esquecer.
Ciana ajeitou sua machadinha, que usava para matar suas caças, sob a capa, presa em sua cintura, pensando se estaria caindo em alguma armadilha. Levava presa à coxa uma pequena faca.
Ao subir os degraus imundos do prédio que uma vez fora belo e imponente, ela se tornou bem alerta, cautelosa. Sobreviveu sozinha contando com seus instintos e era neles que se garantia agora. Percorreu silenciosamente os corredores na penumbra, seus olhos correndo a sua volta, seu coração mais acelerado do que gostaria. A sala onde achara o livro estava perto. Em segundos Ciana chegou sob a soleira da porta aberta e olhou para dentro. Lá havia somente uma pessoa.
Como a luz era pouca, no início ela apenas vislumbrou uma figura alta, recostada contra uma mesa, sua silhueta desenhada contra a janela imensa com várias vidraças quebradas. Ela ficou imóvel, alerta, esperando uma reação. Seus olhos se acostumaram com a pouca luminosidade de uma única lâmpada e ela percebeu novos detalhes. Era um homem bem vestido, cabelos negros banhados pelos raios do luar que vinham da janela, levemente despenteados, roçando a gola de sua camisa cara e fina. E segurava uma garrafa de bebida, em uma pose displicente. Mas o que a imobilizou foram seus olhos, fixos nela. Até Gibran pareceu se impressionar, pois ficou quieto.
Um arrepio percorreu a espinha de Ciana e ela mal percebeu que por um momento sua respiração falhou. Aqueles olhos lindos, azuis, brilhando no escuro como dois cristais reluzentes deixaram-na completamente hipnotizada. Seu coração deu um salto absurdo e então disparou loucamente, espalhando adrenalina em seu sangue, deixando-a completamente abalada.
Tudo o que via era ele, o homem mais belo e impressionante que pusera os olhos na vida. Esqueceu de todos os cuidados para não encarar as pessoas, passar despercebida, estar alerta. O único pensamento racional que teve foi que ele não era estranho, ela já o vira em algum lugar.
Sem pensar que poderia estar caindo em uma armadilha ou correndo riscos, Ciana simplesmente entrou na enorme sala e caminhou na direção dele. Parecia querer comprovar que ele era real. Ou simplesmente vê-lo mais de perto.