Valaistu
Ó divina luz, ilumine minhas trevas! Ó sol inacessível aqueça minh’alma que jaz nas sombras da morte! Ó suprema divindade que eu possa contemplar-te facea face e diluir-me em ti! Em ti... em ti... em ti...
Esta súplica tão simples e profunda não nascia nos lugares mais agradáveis de Pilarium: nas vastas avenidas, ou na região das praias, nem mesmo nas partes mais simples, como os guetos, mas em um lugar que poucos conheciam, um lugar no qual poucos pensavam que pudesse viver gente por lá. Esta prece tão límpida, destituída de mancha nasceu nas entranhas daquela cidade, no seu subsolo, no seu interior onde correm dejetos, ratos, baratas e uma comunidade de miseráveis que, longe da luz do sol, de odores agradáveis luta, com a força que tem, para sobreviver. Esta prece nasceu dos lábios de um jovem, venerado como se fosse um santo por aquela gente. Seu nome é Valaistu: o iluminado.
Todos os dias, a comunidade que vivia sob a cidade de Pilarium acorria a Valaistu para pedir algum conselho ou simplesmente para vê-lo em profunda meditação. Ele os atendia sempre com um sorriso pacífico nos olhos e nos lábios, muitas vezes contava alguma história que tinha lido nos livros que havia encontrado nas galerias daquele lugar ou recitava algum poema que compusera, durante algum transe noturno. Valaistu era para aquele povo uma espécie de líder e conselheiro espiritual.
Às vezes, porém, esta serenidade era abalada, durante a noite, quando ele mergulhava em profunda meditação. Em uma dessas noites quando teve visões estranhas, que o arrepiaram de uma forma jamais imaginada alguns questionamentos nasceram e perturbaram seu espírito. Ele refletia consigo sobre a profundidade da existência. O que era viver naquele mundo, no qual tudo o que parecia seguro, certo, racionalmente aceitável encontrava-se em ruína, mesmo após o surgimento de Pilarium, a suntuosa. Não foram apenas estruturas físicas que ruíram, com a Terceira Guerra Mundial, mas toda uma compreensão de mundo estava irrevogavelmente destroçada. A vida era outra. Outros modelos deveriam surgir a partir dos escombros daquela civilização. Bem ou mal não parecia ser mais esta a questão ou a opção. Tudo estava tão confuso em sua mente que Valaistu, por um instante, pensou em se desesperar, mas se conteve, ao repetir incessantemente o seu mantra matinal, agora na noite escura. Nada, ninguém, nem mesmo seu ego inflado o impediria de encontrar a paz, a luz divina em meio ao caos, pensava cheio de convicção quando...
- Senhor Valaistu, senhor Valaistu! – uma voz angustiada feriu os ouvidos de Valaistu, retirando-o bruscamente de sua meditação.
- O que deseja José? – perguntou, sem demonstrar irritação pela interrupção.
- Desculpe-me, senhor Valaistu, interromper a sua meditação. É que... meu Deus... é que houve uma fuga!
- Sim... Foi sua filha que fugiu, não é?- ao afirmar isso Valaistu fincou seus olhos nos olhos de um trêmulo José.
- Ehh... sim... como o senhor ficou sabendo?
- Isso não vem ao caso.
- Será que ela foi lá para cima?
- Não se preocupe José, se ela fugiu, ela não irá muito longe.
- De onde vem a sua certeza, senhor Valaistu?
- Você está duvidando de mim, José? – mais uma vez Valaistu pôs o seu olhar nos olhos do frágil José.
- Não! Jamais, senhor Valaistu.
- Muito bem. Você conhece uma planta chamada mimosa?
- Senhor Valaistu, nesse lugar o que menos tem é planta. Nem sei mais o que é o verde de uma planta. O único verde que conheço é o do mofo ou de coisa apodrecida.
Valaistu sentiu compaixão da triste constatação de José. Aquela gente miserável já nem sabia mais distinguir as cores, já nem sabia o que significava o calor e a luz intensa do sol. Os habitantes de Pilarium - pensava com certo rancor - deveriam pagar pelos pecados cometidos contra essa gente. Mas voltando a si e continuando a conversa com José, ele prosseguiu:
- As mimosas são plantas sensíveis a qualquer tipo de movimento. Quando alguém ou algo as tocam elas se encolhem todas. Por isso lhe digo José, as mimosas vão me trazer sua filha, sã e salva. Isso é questão de segundos, pois sua filha já foi encontrada por elas.
- Sério?- perguntou assombrado aquele homem.
- Sério. Ei-la. – ao dizer isso, Valaistu abriu um dos braços como se estivesse apresentando algum cantor num show televisivo.
Subitamente apareceu diante dos dois uma enorme planta, que trazia enrolada em si uma criança. José ficou atemorizado, ao perceber que Valaistu estava manipulando aquela planta monstruosa com uma das mãos.
- O que é isso, meu Deus! Senhor Valaistu, o que é isso?
- Tenha calma, José. A sua filha está aqui, sã e salva como lhe prometi.
- Mmmas... mmas... – o pobre homem já não sabia articular uma palavra sequer.
A criança parecia estar em estado de choque. Os olhos estavam arregalados. A menina não parava de repetir:
- Entregar ao senhor Valaistu antes da meia-noite... entregar ao senhor Valaistu antes da meia-noite...
Valaistu percebeu que a criança tinha sido hipnotizada e que trazia em uma de suas mãos um pequeno papel, delicadamente dobrado. Com certo esforço ele retirou o papel das mãos da menina e ela instantaneamente recobrou a consciência.
- Papai, papai, onde estou?
- Você está em casa, minha filha. – sorria um José, ainda atemorizado com o que havia acontecido diante de seus olhos.
Nesse instante, Valaistu se levantou e dirigiu-se a José. Enfiou as mãos dentro de um de seus bolsos, fazendo com que José tremesse por dentro, temendo pelo pior.
- Não tenha medo, José. – ao falar isso sacou do bolso uma linda rosa.
- Uma rosa!- gritou a menina.
- Sim, uma rosa, minha menina. E esta é de verdade. Não é um desenho. – Valaistu olhava com ternura para a menina e depois voltando seus olhos para José, ele continuou – Sinta o aroma desta rosa, José. Inspire forte. Vamos.
- Mas... eu não quero, senhor Valaistu.
Um leve lampejo de cólera passou pelos olhos de Valaistu, mas a doce voz da menina não deixou que tal cólera se exteriorizasse:
- Papai cheira logo, vai!
- Não vai ouvir sua princesa? – concordava Valaistu.
- Tudo bem.
José inalou o perfume da rosa. A essência daquela flor invadiu diretamente o seu cérebro, cancelando a memória recente dos fatos que lhe sucederam.
- Está tudo bem com sua filha, José. Era só uma dor de barriga, que logo passará. – disse Valaistu.
- Obrigado, senhor Valaistu.
Logo que os dois saíram daquele recinto, Valaistu abriu o bilhete e se defrontou com a seguinte escrita:
"Esteja ao anoitecer na velha biblioteca da Quinta com a Santra. Assunto de seu estreito interesse. O passado às vezes bate a porta, meu caro."
Ass.: P.L
Sem demonstrar muito embaraço com o que estava escrito, Valaistu desenhou um leve sorriso nos lábios e serenamente disse para si mesmo:
- Parece que depois de muito tempo vou ter que encarar você novamente, Pilarium: a suntuosa.
Faltando poucos minutos para a noite completa, Valaistu chegou ao lugar indicado. Antes de entrar no recinto conseguiu perceber um vulto se escondendo pelo lado de trás da construção. Ele sorriu tranquilamente e pensou consigo: “Ela é bem ágil, mas esse delicioso perfume me faria encontrá-la a quilômetros”.
- Muito bem... acho que o show vai começar.
Ao dizer isso, Valaistu entrou e deixou a porta fechar atrás de si.
Ó divina luz, ilumine minhas trevas! Ó sol inacessível aqueça minh’alma que jaz nas sombras da morte! Ó suprema divindade que eu possa contemplar-te facea face e diluir-me em ti! Em ti... em ti... em ti...
Esta súplica tão simples e profunda não nascia nos lugares mais agradáveis de Pilarium: nas vastas avenidas, ou na região das praias, nem mesmo nas partes mais simples, como os guetos, mas em um lugar que poucos conheciam, um lugar no qual poucos pensavam que pudesse viver gente por lá. Esta prece tão límpida, destituída de mancha nasceu nas entranhas daquela cidade, no seu subsolo, no seu interior onde correm dejetos, ratos, baratas e uma comunidade de miseráveis que, longe da luz do sol, de odores agradáveis luta, com a força que tem, para sobreviver. Esta prece nasceu dos lábios de um jovem, venerado como se fosse um santo por aquela gente. Seu nome é Valaistu: o iluminado.
Todos os dias, a comunidade que vivia sob a cidade de Pilarium acorria a Valaistu para pedir algum conselho ou simplesmente para vê-lo em profunda meditação. Ele os atendia sempre com um sorriso pacífico nos olhos e nos lábios, muitas vezes contava alguma história que tinha lido nos livros que havia encontrado nas galerias daquele lugar ou recitava algum poema que compusera, durante algum transe noturno. Valaistu era para aquele povo uma espécie de líder e conselheiro espiritual.
Às vezes, porém, esta serenidade era abalada, durante a noite, quando ele mergulhava em profunda meditação. Em uma dessas noites quando teve visões estranhas, que o arrepiaram de uma forma jamais imaginada alguns questionamentos nasceram e perturbaram seu espírito. Ele refletia consigo sobre a profundidade da existência. O que era viver naquele mundo, no qual tudo o que parecia seguro, certo, racionalmente aceitável encontrava-se em ruína, mesmo após o surgimento de Pilarium, a suntuosa. Não foram apenas estruturas físicas que ruíram, com a Terceira Guerra Mundial, mas toda uma compreensão de mundo estava irrevogavelmente destroçada. A vida era outra. Outros modelos deveriam surgir a partir dos escombros daquela civilização. Bem ou mal não parecia ser mais esta a questão ou a opção. Tudo estava tão confuso em sua mente que Valaistu, por um instante, pensou em se desesperar, mas se conteve, ao repetir incessantemente o seu mantra matinal, agora na noite escura. Nada, ninguém, nem mesmo seu ego inflado o impediria de encontrar a paz, a luz divina em meio ao caos, pensava cheio de convicção quando...
- Senhor Valaistu, senhor Valaistu! – uma voz angustiada feriu os ouvidos de Valaistu, retirando-o bruscamente de sua meditação.
- O que deseja José? – perguntou, sem demonstrar irritação pela interrupção.
- Desculpe-me, senhor Valaistu, interromper a sua meditação. É que... meu Deus... é que houve uma fuga!
- Sim... Foi sua filha que fugiu, não é?- ao afirmar isso Valaistu fincou seus olhos nos olhos de um trêmulo José.
- Ehh... sim... como o senhor ficou sabendo?
- Isso não vem ao caso.
- Será que ela foi lá para cima?
- Não se preocupe José, se ela fugiu, ela não irá muito longe.
- De onde vem a sua certeza, senhor Valaistu?
- Você está duvidando de mim, José? – mais uma vez Valaistu pôs o seu olhar nos olhos do frágil José.
- Não! Jamais, senhor Valaistu.
- Muito bem. Você conhece uma planta chamada mimosa?
- Senhor Valaistu, nesse lugar o que menos tem é planta. Nem sei mais o que é o verde de uma planta. O único verde que conheço é o do mofo ou de coisa apodrecida.
Valaistu sentiu compaixão da triste constatação de José. Aquela gente miserável já nem sabia mais distinguir as cores, já nem sabia o que significava o calor e a luz intensa do sol. Os habitantes de Pilarium - pensava com certo rancor - deveriam pagar pelos pecados cometidos contra essa gente. Mas voltando a si e continuando a conversa com José, ele prosseguiu:
- As mimosas são plantas sensíveis a qualquer tipo de movimento. Quando alguém ou algo as tocam elas se encolhem todas. Por isso lhe digo José, as mimosas vão me trazer sua filha, sã e salva. Isso é questão de segundos, pois sua filha já foi encontrada por elas.
- Sério?- perguntou assombrado aquele homem.
- Sério. Ei-la. – ao dizer isso, Valaistu abriu um dos braços como se estivesse apresentando algum cantor num show televisivo.
Subitamente apareceu diante dos dois uma enorme planta, que trazia enrolada em si uma criança. José ficou atemorizado, ao perceber que Valaistu estava manipulando aquela planta monstruosa com uma das mãos.
- O que é isso, meu Deus! Senhor Valaistu, o que é isso?
- Tenha calma, José. A sua filha está aqui, sã e salva como lhe prometi.
- Mmmas... mmas... – o pobre homem já não sabia articular uma palavra sequer.
A criança parecia estar em estado de choque. Os olhos estavam arregalados. A menina não parava de repetir:
- Entregar ao senhor Valaistu antes da meia-noite... entregar ao senhor Valaistu antes da meia-noite...
Valaistu percebeu que a criança tinha sido hipnotizada e que trazia em uma de suas mãos um pequeno papel, delicadamente dobrado. Com certo esforço ele retirou o papel das mãos da menina e ela instantaneamente recobrou a consciência.
- Papai, papai, onde estou?
- Você está em casa, minha filha. – sorria um José, ainda atemorizado com o que havia acontecido diante de seus olhos.
Nesse instante, Valaistu se levantou e dirigiu-se a José. Enfiou as mãos dentro de um de seus bolsos, fazendo com que José tremesse por dentro, temendo pelo pior.
- Não tenha medo, José. – ao falar isso sacou do bolso uma linda rosa.
- Uma rosa!- gritou a menina.
- Sim, uma rosa, minha menina. E esta é de verdade. Não é um desenho. – Valaistu olhava com ternura para a menina e depois voltando seus olhos para José, ele continuou – Sinta o aroma desta rosa, José. Inspire forte. Vamos.
- Mas... eu não quero, senhor Valaistu.
Um leve lampejo de cólera passou pelos olhos de Valaistu, mas a doce voz da menina não deixou que tal cólera se exteriorizasse:
- Papai cheira logo, vai!
- Não vai ouvir sua princesa? – concordava Valaistu.
- Tudo bem.
José inalou o perfume da rosa. A essência daquela flor invadiu diretamente o seu cérebro, cancelando a memória recente dos fatos que lhe sucederam.
- Está tudo bem com sua filha, José. Era só uma dor de barriga, que logo passará. – disse Valaistu.
- Obrigado, senhor Valaistu.
Logo que os dois saíram daquele recinto, Valaistu abriu o bilhete e se defrontou com a seguinte escrita:
"Esteja ao anoitecer na velha biblioteca da Quinta com a Santra. Assunto de seu estreito interesse. O passado às vezes bate a porta, meu caro."
Ass.: P.L
Sem demonstrar muito embaraço com o que estava escrito, Valaistu desenhou um leve sorriso nos lábios e serenamente disse para si mesmo:
- Parece que depois de muito tempo vou ter que encarar você novamente, Pilarium: a suntuosa.
Faltando poucos minutos para a noite completa, Valaistu chegou ao lugar indicado. Antes de entrar no recinto conseguiu perceber um vulto se escondendo pelo lado de trás da construção. Ele sorriu tranquilamente e pensou consigo: “Ela é bem ágil, mas esse delicioso perfume me faria encontrá-la a quilômetros”.
- Muito bem... acho que o show vai começar.
Ao dizer isso, Valaistu entrou e deixou a porta fechar atrás de si.